sábado, 25 de agosto de 2012

O líder segundo o evangelho

“Então Jesus, chamando-os para junto de si, disse: Bem sabeis que pelos príncipes dos gentios são estes dominados, e que os grandes exercem autoridade sobre eles.
Não será assim entre vós; mas todo aquele que quiser entre vós fazer-se grande seja vosso serviçal; e, qualquer que entre vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo.” (Mt 20.25-27).
O que acabamos de ler são palavras pronunciadas por Jesus. Fiz questão de negritar aquelas que considerei mais relevantes para minha breve alocução sobre o líder segundo o evangelho. Se observarmos todo o texto em seu contexto mediato e imediato, veremos que o arrazoado do mestre se deu por causa de uma discussão entre os discípulos, pois dois deles queriam a preeminência.
Jesus aponta de modo muito claro a explícita diferença entre o governo secular (no caso, romano) e o governo da sua eclésia (a igreja). No secularismo há domínio, embora maquiado de democracia (o voto obrigatório no Brasil que o diga), na eclésia do Senhor há liberdade, e o filho de Deus é cativo única e exclusivamente da consciência renovada pelo evangelho, digo com todas as letras: e-v-a-n-g-e-l-h-o!!!! Não falo de religiosismo, fanatismo e afins.
O “não será assim entre vós” de Cristo, é veemente e não deixa lugar para dúvidas. Não há espaço para autoritarismo e sim para ser o modelo do rebanho. A influência de alguém na eclésia do Senhor sempre foi reconhecida pelo serviço prestado à comunidade eclesial. “E rogamo-vos, irmãos, que reconheçais os que trabalham entre vós e que presidem sobre vós no Senhor, e vos admoestam” (I Tss.5.12).
No discurso do Senhor Jesus, o maior é aquele que mais doa de si para o reino. Quer ser um dos grandes? Trabalhe com a seriedade de um fiel empregado, possuindo todos os direitos trabalhistas: férias, décimo terceiro, honra da parte dos homens... É basicamente isto que o texto deseja transmitir. Quer ser o primeiro na eclésia? Seja o escravo. O escravo foi comprado, não possui herança, não trabalha por salário, não espera décimo terceiro e nem reconhecimento.
Presbítero, bispo, pastor
Nas escrituras, no ministério apostólico, e ao longo da história da igreja no primeiro século, não encontramos a estrutura hierárquica produzida a partir da sua romanização, a qual se desenvolveu em meio as desculpas sobre a demorada volta do Senhor e a necessidade de salvaguardar a linhagem sucessória dos apóstolos.
O que era domínio do Espírito, tornou-se uma usurpação disfarçada de zelo, que levou a igreja ao clericalismo bem profetizado em apocalipse, onde o Senhor Jesus denuncia os nicolaítas:“Tens, porém, isto: que odeias as obras dos nicolaítas, as quais eu também odeio”. (Ap. 2.6).
Observe que a igreja em Éfeso, embora sendo exortada a voltar aos princípios elementares da sua fé, é ainda elogiada pelo Senhor por ter algo em comum com Ele; o asco ao nicolaísmo. A essa altura é imprescindível saber o que isso significa. Nicolaíta provém de dois vocábulos: nicao - vencedor, dominador ou conquistador, e laos - laicato ou governo do povo. Portanto, nicolaíta é alguém que governa (domina) sobre o povo comum.
Vemos aqui uma manifestação repudiosa do Senhor contra aquela semente de autoritarismo tirânico e arbitrário, que culminaria em uma hierarquia papal epidêmica, pois perpassaria à era medial, e mesmo a reforma não seria capaz de debelá-la.
A estrutura reformada, a princípio, suavizou a questão, porém, ao longo da história da igreja a configuração estrutural da eclésia foi se secularizando e tornando-se cada vez mais parecida com a religião romanista.
Isso não era senão um retorno ao judaísmo, com influências pagãs, as quais descaracterizaram a eclésia, tornando-a cristã nominal, desprovida de sua credencial celeste, communionem Sanctorum1 .
É pertinente a observação que há um desenvolvimento do nicolaísmo. Em Éfeso, ele está circunscrito a obras, no entanto, em Pérgamo o que era mera ação, obra, torna-se doutrina: “Assim tens também os que seguem a doutrina dos nicolaítas, o que eu odeio”. Ap.2.15.
Há no clericalismo atual, que grassa em todo o sistema denominacional evangélico um profundo choque com a doutrina do sacerdócio universal de todos os cristãos (I Pe.2.9). Na atual conjuntura, somos ensinados a sermos dependentes da figura pastoral.
No pastorado conforme o Novo Testamento, os ministros preparam a eclésia para a maturidade e liberdade em Cristo: “E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores, Querendo o aperfeiçoamento (amadurecimento) dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo.
Até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a homem perfeito (maduro), à medida da estatura completa de Cristo”. (Ef. 4.11-13).
Pastores, presbíteros e bispos, nada mais são que serviçais do Reino, os quais receberam a graça e a honra de serem chamados para o santo ministério (ministério = serviço). Pastor é sempre uma palavra referida a Cristo no Novo Testamento, com a exceção de Ef. 4.11, embora saibamos que o presbítero também é um apascentador.
Presbítero (πρεσβυτερος) – é um irmão mais velho, ou seja, alguém com uma larga experiência, conhecimento e testemunho de fé claramente reconhecidos pela igreja local. O seu chamado é para cuidar do rebanho (I Tm. 3. 1-7, Tt.1.5-9). O mesmo se pode dizer do bispo ( επίσκοπος ), que para Paulo possuí a mesma acepção de presbítero.
“Por esta causa te deixei em Creta, para que pusesses em boa ordem as coisas que ainda restam, e de cidade em cidade estabelecesses presbíteros, como já te mandei: Aquele que for irrepreensível, marido de uma mulher, que tenha filhos fiéis, que não possam ser acusados de dissolução nem são desobedientes. Porque convém que o bispo seja irrepreensível...”.(Tt.1.5-7).
Reconhecimento sim, clericalismo não
“Aos presbíteros, que estão entre vós, admoesto eu, que sou também presbítero com eles, e testemunha das aflições de Cristo, e participante da glória que se há de revelar: Apascentai o rebanho de Deus, que está entre vós, tendo cuidado dele, não por força, mas voluntariamente; nem por torpe ganância, mas de ânimo pronto; nem como tendo domínio sobre a herança de Deus, mas servindo de exemplo ao rebanho. E, quando aparecer o Sumo Pastor, alcançareis a incorruptível coroa da glória (I Pe. 5.1-4).
Podemos observar nas palavras de Pedro a completa ausência da ideia de uma pirâmide hierárquica clerical, que invadiu a igreja a partir de Inácio de Antioquia no fim do século I, o qual já defendia o primado dos bispos como únicos representantes de Cristo frente a Igreja e o mundo.
“Segui ao bispo, vós todos, como Jesus Cristo ao Pai. Segui ao presbítero como aos apóstolos[...] Ninguém ouse fazer sem o bispo coisa alguma concernente à Igreja. Como válida só se tenha a eucaristia celebrada sob a presidência do bispo ou de um delegado seu. […] Sem a união do bispo não é lícito batizar nem celebrar a eucaristia; só o que tiver sua aprovação será do agrado de Deus e assim será firme e seguro o que fizerdes.” 2
Inácio também afirma em suas cartas o primado de Roma : “Roma preside a Igreja na caridade”.3
Tal atitude é veementemente rechaçada por João em uma de suas cartas, em que um certo Diótrefes ansiava o poder em detrimento da autoridade apostólica: “Tenho escrito à igreja; mas Diótrefes, que procura ter entre eles o primado, não nos recebe.
Por isso, se eu for, trarei à memória as obras que ele faz, proferindo contra nós palavras maliciosas; e, não contente com isto, não recebe os irmãos, e impede os que querem recebê-los, e os lança fora da igreja”. (III Jo. 9,10).
Perceba que Diótrefes estava contra os apóstolos e usurpou a autoridade dos discípulos do Senhor, se achando no direito de ditar normas, não tendo sido chamado por Deus para apascentar, muito menos para presidir a Igreja de Cristo.
Se voltarmos para a epístola de Pedro notamos que aquele que dizem, ter obtido o primado de Roma, e isso do próprio Cristo, demonstra com suas palavras desconhecer, e sobretudo, não reconhecer essa doutrina.
Quando fala dos colegas presbíteros, em momento algum se põe como superior : “Aos presbíteros, que estão entre vós, admoesto eu, que sou também presbítero com eles”. Note que para Pedro nada o diferenciava com relação aos outros presbíteros, ele era um com eles. Pedro não se sentia bispo deles, o que o estacava entre os irmãos era ter sido testemunha das aflições de Cristo.
Havia sim um respeito da parte da Igreja aos apóstolos do Senhor, porém isso nunca levou a Igreja, até essa época, para crença de um bispo sobre todos os bispos, isso nunca foi ideia da Igreja nascente dos apóstolos, e muito menos de Cristo.
Podemos perceber que para Paulo, o apóstolo dos gentios, não havia um maioral em Jerusalém responsável por toda a Igreja em todos os lugares. Quando se refere aos mais proeminentes apóstolos, fala no plural: “E conhecendo Tiago, Cefas e João, que eram considerados como as colunas...” (Gl. 2.9). Em nenhum momento Paulo mencionou um bispado único.
Outro fato que aclara a visão apostólica sobre a direção da Igreja pode ser observado em dois episódios. Quando Samaria recebeu o Evangelho, nada se mencionou sobre uma autoridade acima da Igreja enviando algum obreiro para aquela cidade, pelo contrário, outros apóstolos enviaram aqueles que eram tidos como os maiores. Lembre-se, para Jesus o maior é o que serve.
Os apóstolos, pois, que estavam em Jerusalém, ouvindo que Samaria recebera a palavra de Deus, enviaram para lá Pedro e João”. (At. 8. 14).
O segundo episódio a ser analisado diz respeito ao trato que Pedro dá a Paulo: “E tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor; como também o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada”. (II Pe. 3.15).
Sabemos que o nicolaísmo se encontra tão arraigado na Igreja, que se um ministro chamar outro de irmão sem lhe titular como pastor, bispo, apóstolo ou coisa que o valha, será motivo bastante para um grande desentendimento entre os dois.
Pedro e os demais apóstolos reconheciam o chamado e a obra de Paulo: “E conhecendo Tiago, Cefas e João, que eram considerados como as colunas, a graça que me havia sido dada, deram-nos as destras, em comunhão comigo...” ( Gl. 2. 9). Entretanto, para eles o apostolado era um serviço prestado a eclésia do Senhor, não um cargo que denotava uma superioridade hierárquica sobre os demais.
O apóstolo Pedro compreendia de modo muito claro a posição, sabedoria e ministério Paulino, e esse era mais um motivo para chamá-lo de “amado irmão”, pois para Pedro alguém que agia como Paulo, deveria de fato ser muito amado pelos outros apóstolos e pela eclésia do Senhor.
O reconhecimento do trabalho apostólico e episcopal por parte da igreja sempre teve como ponto basilar o serviço.
Protestando o não reconhecimento do seu ministério, Paulo diz aos coríntios: “Se eu não sou apóstolo para os outros, ao menos o sou para vós; porque vós sois o selo do meu apostolado no Senhor.” (I Co. 9.2). Paulo não está reclamando autoridade para si, e sim o reconhecimento do serviço apostólico.
Em outro lugar acrescenta: “Eu de muito boa vontade gastarei, e me deixarei gastar pelas vossas almas, ainda que, amando-vos cada vez mais, seja menos amado.” ( II Co. 12.15). O vemos noutro lugar xpressando o que entendia sobre apostolado.
“Porque tenho para mim, que Deus a nós, apóstolos, nos pôs por últimos, como condenados à morte; pois somos feitos espetáculo ao mundo, aos anjos, e aos homens.
Nós somos loucos por amor de Cristo, e vós sábios em Cristo; nós fracos, e vós fortes; vós ilustres, e nós vis. Até esta presente hora sofremos fome, e sede, e estamos nus, e recebemos bofetadas, e não temos pousada certa, e nos afadigamos, trabalhando com nossas próprias mãos. Somos injuriados, e bendizemos; somos perseguidos, e sofremos;
Somos blasfemados, e rogamos; até ao presente temos chegado a ser como o lixo deste mundo, e como a escória de todos.” (I Co. 4. 9-13).
É interessante notar que tanto Pedro quanto Paulo, falam de apascentamento como cuidado com o rebanho do Senhor: “Apascentai o rebanho de Deus, que está entre vós, tendo cuidado dele. (I Pe. 5.2). Falando das qualidades do bispo Paulo diz que a casa deste deve ser governada, porém, quando se refere a igreja, declara que deve ser cuidada.
“Que governe bem a sua própria casa, tendo seus filhos em sujeição, com toda a modéstia (Porque, se alguém não sabe governar a sua própria casa, terá cuidado da igreja de Deus?)” (I Tm. 3 .4-5).
É esse tipo de líder que deve ser honrado pela igreja.
O clericalismo religioso, que por vezes descamba para a política secular, fazendo do rebanho apenas produtores de lã, leite e carne para a locupletação de um lobo voraz e mercenário, que usa a eclésia como mero curral eleitoral e objeto das suas ambições mais esdrúxulas, esse sim, deve sofrer por parte dos seguidores de Cristo uma rejeição veemente, total e absoluta.
Que a eclésia do Senhor em tempos tão difíceis, tenha o discernimento e a equidade necessária para rejeitar o nicolaísmo, e com respeito, terno e entranhável afeto, reconhecer os irmãos (presbítero, bispos= pastores) que foram chamados para serem ovelhas guias do rebanho do Senhor.
“Obedecei aos vossos guias (termo original) e sede submissos para com eles; pois velam por vossa alma, como quem deve prestar contas, para que façam isto com alegria e não gemendo; porque isto não aproveita a vós outros.” ( Hb. 13. 17).
Em Cristo, Wanderley Nunes.
1 a comunhão dos santos
2Apud New Advent. Página visitada em 29/01/2011.
3Ibid.