Um
dia desses me perguntaram: O que é a verdade para você? Visto que continuamente
ouço o seu discurso nas mídias e sua resposta tem sido: A verdade é Jesus, o
Cristo. Se a verdade é Jesus Cristo, então você não tem nenhuma verdade para
propor?
Gostaria
de nessa oportunidade esclarecer minha posição de forma bem simples, talvez
para alguns soe até simplista. Quando falo da verdade Jesus, falo da aletheia de Deus, o dado histórico
baseado no testemunho dos antigos e vindicado nas escrituras apostólicas: O
messias de Deus veio ao mundo.
Claro,
a historicidade do evento ficará circunscrita tão somente à proposição de que
um homem de nome Jesus, chamado por alguns de o Nazareno, cuja existência se
deu em determinado período na palestina, possuiu alguns seguidores e que há
pouca coisa para se falar dele como cidadão do seu tempo.
O
que temos de narrações a respeito de Jesus, na verdade não são fatos
estritamente históricos e sim, testemunhos de fé. O novo testamento não é em si
mesmo uma biografia, mas o relato testemunhal de um ato do Deus da nação
Israelita, no tempo e em local definido. Desse modo, o Jesus histórico foi
apenas um judeu dentre tantos que se autoafirmava profeta, o Jesus da fé é o
messias de Deus, o salvador do mundo.
Assim,
para que alguém creia em Jesus o Cristo, necessita de fé para acreditar na sua
transcendência divina. Porém, antes de abordar a aletheia Jesus, pretendo discorrer sobre alguns aspectos do
vocábulo “verdade”.
Verdades
A
verdade no sentido filosófico, é como disse Chauí: “A não aceitação de crenças
e certezas estabelecidas [1]”, posto que o papel da filosofia é a busca
incessante da verdade. Temos assim, filosoficamente falando, a verdade como um
horizonte utópico. É relevante também, a observação do conceito da verdade nas
culturas influenciadoras do pensamento humano.
Para
os hebreus, a verdade (emunah) tem o sentido de confiança, é o que se apresenta
por providência divina: O que Deus providencia é a verdade. Em latim a verdade
(veritas), é tudo o que pode ser demonstrado fielmente, veritas ganha aqui a
acepção de precisão de relato: Acredito que o que foi relatado para mim é a
“verdade” do fato.
No
senso comum, se pode afirmar que a verdade é tudo o que é real e fato, ou o ser
em si das coisas. O grande problema de tal assertiva, é que tudo no plano
temporal e físico está em constante mutação. Como ser verdade o que muda física
e temporalmente? Acreditar que aquilo que mudou no ser contínua nele como
essência, é no mínimo um dogmatismo caduco.
A
verdade, por esse âmbito, só pode ser vista como relativa, desse modo tal
pensamento se coaduna com o pensar filosófico: A verdade é uma busca inglória,
quando a achamos, a perdemos, pois sua apreensão segue o círculo continuo e
descontinuo do pensar humano.
O
pensar científico como é filho da filosofia, tem como pressuposto a verdade
presente. É verdade o que descobri agora. A metodologia científica é objetiva,
avaliadora, criteriosa, não rejeita jamais o contraditório, posto ser o
propulsor do contínuo renovo, da contínua modificação.
No
pensar científico, embora haja firmeza na busca do fato, carrega consigo a
flexibilidade própria do cientificismo, onde a verdade é sujeita as novas
avaliações, de tal modo que o que era verdade ontem, talvez não o seja hoje,
podendo obter novas configurações amanhã. Os indoutos chamarão isso de
inconsistência, quando ao contrário, é a afirmação desafetada de que o saber é
ininterrupto, não havendo sobre ele uma palavra final, definitiva.
Aletheia
Em
grego, verdade é aletheia: o não-oculto,
não-escondido, não-dissimulado, o evidente, a manifestação do que é ou existe
como é. O verdadeiro dito assim, está nas próprias coisas e a verdade é a
qualidade que as coisas contêm. O Escritor do quarto evangelho, parece não
conceber a aletheia desse modo. Na
concepção Joanina, a verdade não se encontra no evidente, nem reside nas
qualidades das coisas.
Do
mesmo modo como anteriormente o Logos helênico havia recebido uma nova leitura,
a aletheia grega ganha uma
conceituação muito mais ampla. A verdade
nessa nova configuração, recebe o status de evento divino: O amor de
Deus se manifestou em Jesus. Tal fenômeno deve ser depreendido em fé, pois só
pela fé será anuído como aletheia
divina.
A
aletheia Jesus, é a vindicação do
Divino em humanidade, tal manifestação não pode ser apreendida perfeitamente
pelo intelecto. Querer compreender a divindade, sistematizá-la, enquadrá-la, é
próprio do homem, daí nasceu a religião. Os sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas)
com todas as suas reminiscências judaizantes, helenísticas e romanas não
conseguem adequar Jesus as suas respectivas cosmovisões, percebe-se sempre um
vácuo.
O
relato Joanino serve de exemplo no que diz respeito a insensibilidade humana
com relação ao ato de Deus. Não recomendaria a ninguém iniciar uma busca pela
compreensão da manifestação da aletheia
divina, por estudos teológicos exclusivistas, manipuladores de deus (letra
minúscula mesmo. Só um deus assim - um ídolo - seria manipulável), mas pela crença de que o
criador de tudo, aquele que em tudo se manifesta, falou em humanidade através
de Jesus.
Vocês estudam cuidadosamente
as Escrituras, porque pensam que nelas vocês têm a vida eterna. E são as
Escrituras que testemunham a meu respeito; contudo, vocês não querem vir a mim
para terem vida. (Jo. 5. 39, 40).
O
relato fala do embate de Jesus com os melhores estudiosos da época. Porém,
enquanto liam, perscrutavam, sistematizavam o ato divino (a chegada do
messias), a realidade salvífica estava ali.
Perceba
no próximo texto, o fraseado do Cristo com relação aos que o rejeitaram
veementemente.
Jesus disse: "Pai,
perdoa-lhes, pois não sabem o que estão fazendo". (Lc 23:34).
É
pertinente observar no relato Lucano a supressão de toda e qualquer forma de
separatismo, nem se enseja nenhum tipo de “troco”, vingança. Jesus perdoa quem
o condena! Em alguns outros trechos dos evangelhos, podemos facilmente perceber
um messias forjado pelo religiosismo exclusivista dos seus seguidores. É
exatamente nesse sentido, que o Jesus aletheia
difere do Jesus que os homens enquadraram nos livros; mesmo a bíblia sofre
desse mal.
Embora
encontremos no Novo Testamento várias formatações impostas sobre Jesus, no
entanto, não são suficientemente fortes a ponto de impedirem o vislumbre que
conseguimos obter da aletheia divina,
a qual se impõe sobre os preconceitos dos mais diversos e nem mesmo os mais
hábeis escritores conseguiram suplantar.
O
Jesus para além da religião, do exclusivismo, só pode ser percebido como a aletheia de Deus. Por esse motivo, ele
não pode ser assimilado através de composição intelectual, dogmas e pedagogias
das mais diversas. Observe que no texto Joanino os homens o estavam procurando
no livro, porém ele não estava lá. O livro falava dele, mas não era ele.
A palavra de Deus
A
bíblia de forma ortodoxa é chamada de “a palavra de Deus”, todavia, o que
podemos afirmar é o seu testemunho a respeito dele. Em hipótese alguma é a
palavra de Deus no sentido lato da acepção.
A
palavra de Deus é Jesus, a aletheia
divina. A bíblia fala de Deus, Jesus é a expressão dele. Qualquer tipo de
manifestação literária se adstrita ao falar da aletheia Jesus. É inconcebível e fere a inteligência, supor que a
palavra de Deus está involucrada em um livro temporal, físico e eivado de
ambiguidades.
Existem,
pelo menos, duas coisas as quais gostaria de acentuar. A primeira: Não vejo nem
um apequenamento da bíblia, afirmar não ser ela a palavra de Deus; pois se
afirmássemos ser ela a palavra de Deus, poríamos um livro no mesmo nível do
logos da fé. O livro teve início, composição, cópias, traduções. Um livro serve
para enriquecer em conhecimento, fazer pensar, provocar o leitor. Um livro pode
até salvar.
E
aqui faço a segunda observação: Quando falo que o livro salva, não estou de
modo algum falando de soteriologia [2]; falo de salvação intelectual,
epistemológica.
É
interessante, que os mesmos que defendem a bíblia como a palavra inerrante de
Deus, são os mesmos que protestariam se minha fala pusesse a bíblia como
salvífica, o que atesta a total incongruência da argumentação deles.
Se
ela fosse perfeita e inerrante, no mínimo seria Deus de Deus, como diz o
catecismo da igreja [3] e
estaria em pé de igualdade com o próprio Jesus como evento salvífico. O que
levantaria um novo problema teológico para a cristandade, já tão envolvida em
querelas milenares. Já não se poderia declamar o velho mote cristão: Só Jesus
salva, seria: Jesus e a bíblia salvam. Cairia por terra a unicidade salvífica
de Jesus.
A
epístola aos Hebreus traz um testemunho sobre a palavra de Deus, interpretado
frequentemente como se estivesse falando da bíblia, essa é a visão obtida pelo
senso comum, influenciada pela ortodoxia cristã, na veemente defesa da bíblia
como possuindo inspiração plenária.
Pois a palavra de Deus é
viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes; ela penetra ao
ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e
intenções do coração. (Hb 4:12).
Há
um aspecto importante a ser observado. Á época da redação do texto de Hebreus,
havia muito pouca tradição com relação a leitura; os textos, todos do antigo
testamento, eram lidos nas sinagogas por ministros específicos. A igreja, a
princípio, seguiu a mesma didática do judaísmo.
Mais
tarde, algumas cartas dos apóstolos começaram a circular entre as comunidades,
sendo consideradas instruções oficiais, só posteriormente foram incluídas no
cânon do novo testamento. Esses fatos, por si só, já lançam luz sobre o texto
de Hebreus: Se a tradição pedagógica da palavra entre os Hebreus era oral, é
pouco provável que o escritor esteja chamando de “palavra viva” a escrita em
pergaminho.
A
palavra “viva” não pode ser um texto. Um texto não possui em si mesmo o poder
de “julgar” ou “discernir” o coração humano. Julgar e/ou discernir, são
prerrogativas de uma inteligência existente. Definitivamente, a letra estática
de um livro não possui tal característica.
O
que nos leva a assentir o ato divino como a aletheia
de Deus, é a percepção de que nada há de definitivo, pronto e acabado em nossa
dimensão. Não temos condições cognitivas e epistemológicas para afirmar
inexoravelmente a verdade perene das coisas e fatos na existência, mesmo o
falar de Jesus pelas religiões, pelos céticos e pelo homem do evangelho, jamais
se constituirão em aletheia de Deus.
A
aletheia de Deus é única e exclusivamente
o evento divino da salvação. O dogma não é a verdade, segredos bíblicos
teológicos não se constituem em verdade, pois como vimos, não existem verdades
definitivas na existência. O evento divino se constitui em aletheia, pois procede da não existência, daquele que sempre foi, o
eu sou Mosaico.
Eu sou o caminho, a verdade
e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim. (Jo 14:6).
Wanderley
Nunes.
[1] CHAUÍ,
Marilena. Convite a filosofia.São Paulo: Ática, 1994.
[2] Parte da
teologia que trata da salvação do Homem
[3] O
segundo concílio ecumênico, reunido em Constantinopla em 381, guardou esta
expressão na sua formulação do Credo de Niceia e confessou ‘o Filho unigênito
de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos, luz da luz. Deus verdadeiro de
Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai’. (Para ajudar a
compreender melhor, ler: João 14, 6-14; Catecismo da Igreja Católica, números
234-242 e 249-256).