Neste
momento de tanta controvérsia, quando a liderança evangélica se autoproclama
defensora da moral e dos bons costumes
da família brasileira, sobretudo se lançando em fúria desdenhosa contra os
relacionamentos homoafetivos, venho, neste espaço, declarar minha total repulsa
a tal movimento, que nem de longe representa o ideário do povo cristão, muito
menos apresenta qualquer similaridade
com o Evangelho de Jesus Cristo, o qual sempre atendeu aos anseios das minorias, surpreendendo-as com um amor que
chegava a possuir nuanças poéticas, de tão desambicioso e apolitizado que era.
O que temos observado é que um incidente (ou não seria um acidente?) catapultou personagens políticos, até então de exígua expressão ao “seleto” clã dos figurões nacionais. Na verdade se descobriu nesse entrevero acidental, uma riquíssima “casa da pólvora”, capaz de abastecer a gana guerrilheira de sede por poder político, custe o que custar. E se a bola da vez é o casamento homoafetivo, ou a PL 122, melhor ainda.
Seguindo
os ditames desses líderes, se deve olhar para os homoafetivos como dalits,
seres inferiores. E é precisamente aí que o engendramento político-religioso
ganha força, justamente no ponto em que deveria ser mais fraco. Mais fraco na
discriminação, mais fraco no ódio, mais fraco no revanchismo. A “igreja” que
segue as ordens veladas desses “formadores de opinião”, não deveria se
autoproclamar igreja, pois as prerrogativas que estão sendo usadas apontam muito mais para uma ética nietzschiana, em que o
altruísmo é uma fraqueza, e a moral invenção dos fracos.
A reação dos LGBTs ante a eleição para a Comissão dos Direitos Humanos e Minorias (CDHM) de alguém que lhes parece na prática contrário aos seus direitos, seria de se esperar, pois é comum a qualquer grupo social cristão ou não - ou que tenha em sua membresia diversidades de crenças, sentindo-se vilipendiado em seus direitos enquanto cidadãos - protestar e rechaçar veementemente atitudes que sentem preconceituosas. Por outro lado, a recíproca por parte da igreja nunca deveria ter acontecido.
Seria uma vitória da igreja e porque não dizer, da fé
cristã, o assentimento a união civil dos homoafetivos, pois o que está em jogo
são os direitos do cidadão, e sobre isso igreja alguma tem o direito de
arbitrar. O cidadão, hétero ou homossexual, deve ter o poder de escolher com
quem se une e para quem deixa sua herança, sem que para isso necessite aríetes
jurídicos para se livrar dos nós dados pelo setor que mais deveria fazer bulha
por democracia e igualitariedade.
Jesus Cristo, a figura basilar da fé cristã, foi antes de tudo um cidadão judeu, observador das rígidas regras da Torah, todavia, não literalizou, muito menos necrosou a palavra, antes a viveu no espírito do amor gracioso de Deus.
Para Jesus mais importante do que apedrejar a adúltera era
conceder-lhe a oportunidade de rever seus conceitos; mais importante do que
expor ao ridículo um famigerado cobrador de impostos, era se auto convidar para jantar e dormir em sua
casa, gerando no publicano um processo reflexivo decorrente de acolhimento e
desvelo inesperado por parte daquele que mais possuía condições éticas e morais para condená-lo.
A liderança da igreja, hoje, no mesmo espírito dos escribas
e fariseus da época de Jesus, fazem vistas grossas ao genuíno discurso e
prática do grande mestre. Isso se torna patente quando há uma acurada análise
da vida que Cristo viveu e seu trato com todo aquele que ia ao seu encontro com
pureza de alma, em busca de alívio e paz.
A Igreja logo cedo desaprendeu a misericórdia e graça da
ética de Cristo, e se não adulterou os textos bíblicos por causa do seu medo de
assumir um Jesus sem preconceitos, pelo menos suavizou algumas traduções, as quais, exegeticamente
deixam à mostra um Nazareno muito menos mítico-religioso, que ama ao que mais
necessita ser amado e que é bem mais humano e identificado com as dores dos
menos favorecidos e alijados socialmente. Isso, se lido assim, de forma menos
religiosa e mais crua.
Jesus era alguém de fato interessado no próximo, apenas
pelo próximo que esse alguém era. No episódio registrado em Mateus 10.5-13, um
centurião romano é senhor de um escravo jovem, que no texto grego deixa pouca margem para
se negar haver um relacionamento homoafetivo entre ambos, porém, o que Mateus
corajosamente parece demonstrar é como o messias era acolhedor, definitivamente
ele não era homofóbico.
Tendo Jesus entrado em Cafarnaum, apresentou-se-lhe um
centurião, implorando:
Senhor, o meu criado ( παις= amante) jaz em casa, de cama,
paralítico, sofrendo horrivelmente.
Jesus lhe disse: Eu irei curá-lo.
Mas o centurião respondeu: Senhor, não sou digno de que
entres em minha casa; mas apenas manda com uma palavra, e o meu rapaz ( παις=
amante) será curado.
Pois também eu sou homem sujeito à autoridade, tenho
soldados às minhas ordens e digo a este: vai, e ele vai; e a outro: vem, e ele
vem; e ao meu servo( δουλος= escravo, servo) faze isto, e ele o faz.
Ouvindo isto, admirou-se Jesus e disse aos que o
seguiam: Em verdade vos afirmo que nem mesmo em Israel achei fé como esta.
Digo-vos que muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa com
Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus. Ao passo que os filhos do reino serão
lançados para fora, nas trevas; ali haverá choro e ranger de dentes. Então,
disse Jesus ao centurião: Vai-te, e seja feito conforme a tua fé. E, naquela
mesma hora, o servo( παις= amante) foi curado. (Mt. 8. 5-13)
Jesus não foi preconceituoso, o que se pode notar é o quanto
Jesus foi gracioso com o centurião atendendo a um pedido de socorro.
Conforme observamos, só Mateus usa o termo παις (pais –
termo grego para “amante”), o qual apontava 90% das vezes para um
relacionamento homoafetivo, sempre empregado para um servo jovem, usado
sexualmente, algo comum na cultura de alguns povos daquele tempo. Os Judeus
para os quais o Evangelho de Mateus foi escrito, eram familiarizados com essa
situação dos soldados Romanos.
Por isso, o evangelista usa o termo παις (pais = amante)
sem pudor algum. Quando o centurião fala no mesmo texto sobre os outros que lhe
obedecem usa a palavra δουλος (doulos = servo, escravo). Os demais Evangelhos
dirigidos a outros públicos, evitam a palavra παις (pais= amante), usando o
termo υιος (huios = filho) traduzido sem ensejar outro sentido. O grande
exemplo disso é Jo. 4.46. Já Lc. 7.2 substitui παις (pais = amante) por δουλος
(doulos = servo, escravo).
Como judeu, Jesus sabia da rudeza da lei com relação a
homoafetividade, isso todos sabiam. Ele sabia também quanto essas pessoas já
sofriam em si mesmas por assumirem sua opção sexual. Não precisavam de mais
condenação e sim de amor. Se Jesus, o mestre por excelência, não desejou
condenar o centurião condenado pela sociedade judaica do seu tempo, não deveria
ser a posição da igreja no mínimo similar à do seu líder maior?
Não queremos, como cristãos que somos, que a Bíblia, nossa
regra mor de fé e prática, seja desprezada, é direito da igreja enquanto cidadã
poder realizar o seu culto e liturgia conforme preceitua as Escrituras. Nelas
não há anuência ao casamento de pessoas do mesmo sexo.
Se constitucionalmente a Igreja tem o direito de realizar o cerimonial idílico daqueles que fazem parte da sua membresia, os quais, acatam uma visão heterossexual do casamento, e por conseguinte declinar do convite a realização de casamento homoafetivo, do mesmo modo, aquele que não esposa a mesma fé, tem democraticamente o direito de unir-se civilmente com quem desejar sem a intervenção das instâncias religiosas as quais não estão ligados.
Vivemos pelo menos em tese, em uma democracia, devemos
então exercitá-la a partir do princípio da equidade. Se há direitos, eles são
comuns a todos. Não é porque creio, que o meu crer torna-me socialmente
superior ao ceticista, antes sua descrença deve servir de cercas fronteiriças à
minha, por vezes, destemperada credulidade.
Paradoxalmente, minha postura crédula como militante a serviço do etéreo, de forma cristocêntrica sempre me conduzirá aos pés do eterno e aos braços e abraços daquele que difere, possibilitando em muitas ocasiões a descrença da descrença. Quando isso acontece, percebe-se a vitória do amor, do respeito e da cidadania, por conseguinte, a vitória do bem comum. Assim penso Cristo, assim penso a igreja.