terça-feira, 8 de março de 2016

Aletheia



Um dia desses me perguntaram: O que é a verdade para você? Visto que continuamente ouço o seu discurso nas mídias e sua resposta tem sido: A verdade é Jesus, o Cristo. Se a verdade é Jesus Cristo, então você não tem nenhuma verdade para propor?

Gostaria de nessa oportunidade esclarecer minha posição de forma bem simples, talvez para alguns soe até simplista. Quando falo da verdade Jesus, falo da aletheia de Deus, o dado histórico baseado no testemunho dos antigos e vindicado nas escrituras apostólicas: O messias de Deus veio ao mundo.

Claro, a historicidade do evento ficará circunscrita tão somente à proposição de que um homem de nome Jesus, chamado por alguns de o Nazareno, cuja existência se deu em determinado período na palestina, possuiu alguns seguidores e que há pouca coisa para se falar dele como cidadão do seu tempo.

O que temos de narrações a respeito de Jesus, na verdade não são fatos estritamente históricos e sim, testemunhos de fé. O novo testamento não é em si mesmo uma biografia, mas o relato testemunhal de um ato do Deus da nação Israelita, no tempo e em local definido. Desse modo, o Jesus histórico foi apenas um judeu dentre tantos que se autoafirmava profeta, o Jesus da fé é o messias de Deus, o salvador do mundo.

Assim, para que alguém creia em Jesus o Cristo, necessita de fé para acreditar na sua transcendência divina. Porém, antes de abordar a aletheia Jesus, pretendo discorrer sobre alguns aspectos do vocábulo “verdade”.
 


Verdades


A verdade no sentido filosófico, é como disse Chauí: “A não aceitação de crenças e certezas estabelecidas [1]”, posto que o papel da filosofia é a busca incessante da verdade. Temos assim, filosoficamente falando, a verdade como um horizonte utópico. É relevante também, a observação do conceito da verdade nas culturas influenciadoras do pensamento humano.

Para os hebreus, a verdade (emunah) tem o sentido de confiança, é o que se apresenta por providência divina: O que Deus providencia é a verdade. Em latim a verdade (veritas), é tudo o que pode ser demonstrado fielmente, veritas ganha aqui a acepção de precisão de relato: Acredito que o que foi relatado para mim é a “verdade” do fato.

No senso comum, se pode afirmar que a verdade é tudo o que é real e fato, ou o ser em si das coisas. O grande problema de tal assertiva, é que tudo no plano temporal e físico está em constante mutação. Como ser verdade o que muda física e temporalmente? Acreditar que aquilo que mudou no ser contínua nele como essência, é no mínimo um dogmatismo caduco.

A verdade, por esse âmbito, só pode ser vista como relativa, desse modo tal pensamento se coaduna com o pensar filosófico: A verdade é uma busca inglória, quando a achamos, a perdemos, pois sua apreensão segue o círculo continuo e descontinuo do pensar humano.

O pensar científico como é filho da filosofia, tem como pressuposto a verdade presente. É verdade o que descobri agora. A metodologia científica é objetiva, avaliadora, criteriosa, não rejeita jamais o contraditório, posto ser o propulsor do contínuo renovo, da contínua modificação.

No pensar científico, embora haja firmeza na busca do fato, carrega consigo a flexibilidade própria do cientificismo, onde a verdade é sujeita as novas avaliações, de tal modo que o que era verdade ontem, talvez não o seja hoje, podendo obter novas configurações amanhã. Os indoutos chamarão isso de inconsistência, quando ao contrário, é a afirmação desafetada de que o saber é ininterrupto, não havendo sobre ele uma palavra final, definitiva.



Aletheia


know the truth, and the truth will set you freeEm grego, verdade é aletheia: o não-oculto, não-escondido, não-dissimulado, o evidente, a manifestação do que é ou existe como é. O verdadeiro dito assim, está nas próprias coisas e a verdade é a qualidade que as coisas contêm. O Escritor do quarto evangelho, parece não conceber a aletheia desse modo. Na concepção Joanina, a verdade não se encontra no evidente, nem reside nas qualidades das coisas.

Do mesmo modo como anteriormente o Logos helênico havia recebido uma nova leitura, a aletheia grega ganha uma conceituação muito mais ampla. A verdade  nessa nova configuração, recebe o status de evento divino: O amor de Deus se manifestou em Jesus. Tal fenômeno deve ser depreendido em fé, pois só pela fé será anuído como aletheia divina.

A aletheia Jesus, é a vindicação do Divino em humanidade, tal manifestação não pode ser apreendida perfeitamente pelo intelecto. Querer compreender a divindade, sistematizá-la, enquadrá-la, é próprio do homem, daí nasceu a religião. Os sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) com todas as suas reminiscências judaizantes, helenísticas e romanas não conseguem adequar Jesus as suas respectivas cosmovisões, percebe-se sempre um vácuo.

O relato Joanino serve de exemplo no que diz respeito a insensibilidade humana com relação ao ato de Deus. Não recomendaria a ninguém iniciar uma busca pela compreensão da manifestação da aletheia divina, por estudos teológicos exclusivistas, manipuladores de deus (letra minúscula mesmo. Só um deus assim - um ídolo - seria  manipulável), mas pela crença de que o criador de tudo, aquele que em tudo se manifesta, falou em humanidade através de Jesus.

Vocês estudam cuidadosamente as Escrituras, porque pensam que nelas vocês têm a vida eterna. E são as Escrituras que testemunham a meu respeito; contudo, vocês não querem vir a mim para terem vida. (Jo. 5. 39, 40).

O relato fala do embate de Jesus com os melhores estudiosos da época. Porém, enquanto liam, perscrutavam, sistematizavam o ato divino (a chegada do messias), a realidade salvífica estava ali.

Perceba no próximo texto, o fraseado do Cristo com relação aos que o rejeitaram veementemente.

Jesus disse: "Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que estão fazendo". (Lc 23:34).

É pertinente observar no relato Lucano a supressão de toda e qualquer forma de separatismo, nem se enseja nenhum tipo de “troco”, vingança. Jesus perdoa quem o condena! Em alguns outros trechos dos evangelhos, podemos facilmente perceber um messias forjado pelo religiosismo exclusivista dos seus seguidores. É exatamente nesse sentido, que o Jesus aletheia difere do Jesus que os homens enquadraram nos livros; mesmo a bíblia sofre desse mal.

Embora encontremos no Novo Testamento várias formatações impostas sobre Jesus, no entanto, não são suficientemente fortes a ponto de impedirem o vislumbre que conseguimos obter da aletheia divina, a qual se impõe sobre os preconceitos dos mais diversos e nem mesmo os mais hábeis escritores conseguiram suplantar.

O Jesus para além da religião, do exclusivismo, só pode ser percebido como a aletheia de Deus. Por esse motivo, ele não pode ser assimilado através de composição intelectual, dogmas e pedagogias das mais diversas. Observe que no texto Joanino os homens o estavam procurando no livro, porém ele não estava lá. O livro falava dele, mas não era ele.



A palavra de Deus


know the truth, and the truth will set you freeA bíblia de forma ortodoxa é chamada de “a palavra de Deus”, todavia, o que podemos afirmar é o seu testemunho a respeito dele. Em hipótese alguma é a palavra de Deus no sentido lato da acepção.

A palavra de Deus é Jesus, a aletheia divina. A bíblia fala de Deus, Jesus é a expressão dele. Qualquer tipo de manifestação literária se adstrita ao falar da aletheia Jesus. É inconcebível e fere a inteligência, supor que a palavra de Deus está involucrada em um livro temporal, físico e eivado de ambiguidades.

Existem, pelo menos, duas coisas as quais gostaria de acentuar. A primeira: Não vejo nem um apequenamento da bíblia, afirmar não ser ela a palavra de Deus; pois se afirmássemos ser ela a palavra de Deus, poríamos um livro no mesmo nível do logos da fé. O livro teve início, composição, cópias, traduções. Um livro serve para enriquecer em conhecimento, fazer pensar, provocar o leitor. Um livro pode até salvar.

E aqui faço a segunda observação: Quando falo que o livro salva, não estou de modo algum falando de soteriologia [2]; falo de salvação intelectual, epistemológica.
É interessante, que os mesmos que defendem a bíblia como a palavra inerrante de Deus, são os mesmos que protestariam se minha fala pusesse a bíblia como salvífica, o que atesta a total incongruência da argumentação deles.

Se ela fosse perfeita e inerrante, no mínimo seria Deus de Deus, como diz o catecismo da igreja [3]  e estaria em pé de igualdade com o próprio Jesus como evento salvífico. O que levantaria um novo problema teológico para a cristandade, já tão envolvida em querelas milenares. Já não se poderia declamar o velho mote cristão: Só Jesus salva, seria: Jesus e a bíblia salvam. Cairia por terra a unicidade salvífica de Jesus.

A epístola aos Hebreus traz um testemunho sobre a palavra de Deus, interpretado frequentemente como se estivesse falando da bíblia, essa é a visão obtida pelo senso comum, influenciada pela ortodoxia cristã, na veemente defesa da bíblia como possuindo inspiração plenária.

Pois a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes; ela penetra ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e intenções do coração. (Hb 4:12).

Há um aspecto importante a ser observado. Á época da redação do texto de Hebreus, havia muito pouca tradição com relação a leitura; os textos, todos do antigo testamento, eram lidos nas sinagogas por ministros específicos. A igreja, a princípio, seguiu a mesma didática do judaísmo.

Mais tarde, algumas cartas dos apóstolos começaram a circular entre as comunidades, sendo consideradas instruções oficiais, só posteriormente foram incluídas no cânon do novo testamento. Esses fatos, por si só, já lançam luz sobre o texto de Hebreus: Se a tradição pedagógica da palavra entre os Hebreus era oral, é pouco provável que o escritor esteja chamando de “palavra viva” a escrita em pergaminho.

A palavra “viva” não pode ser um texto. Um texto não possui em si mesmo o poder de “julgar” ou “discernir” o coração humano. Julgar e/ou discernir, são prerrogativas de uma inteligência existente. Definitivamente, a letra estática de um livro não possui tal característica.

O que nos leva a assentir o ato divino como a aletheia de Deus, é a percepção de que nada há de definitivo, pronto e acabado em nossa dimensão. Não temos condições cognitivas e epistemológicas para afirmar inexoravelmente a verdade perene das coisas e fatos na existência, mesmo o falar de Jesus pelas religiões, pelos céticos e pelo homem do evangelho, jamais se constituirão em aletheia de Deus.

A aletheia de Deus é única e exclusivamente o evento divino da salvação. O dogma não é a verdade, segredos bíblicos teológicos não se constituem em verdade, pois como vimos, não existem verdades definitivas na existência. O evento divino se constitui em aletheia, pois procede da não existência, daquele que sempre foi, o eu sou Mosaico.

Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim. (Jo 14:6).


Wanderley Nunes.


[1] CHAUÍ, Marilena. Convite a filosofia.São Paulo: Ática, 1994.
[2] Parte da teologia que trata da salvação do Homem
[3] O segundo concílio ecumênico, reunido em Constantinopla em 381, guardou esta expressão na sua formulação do Credo de Niceia e confessou ‘o Filho unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos, luz da luz. Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai’. (Para ajudar a compreender melhor, ler: João 14, 6-­14; Catecismo da Igreja Católica, números 234-­242 e 249-­256).

segunda-feira, 7 de março de 2016

Reflexões: Prefiro a dúvida...


"Prefiro a dúvida, filha da sobriedade, do que a certeza dogmática, mãe de todo radicalismo".Wanderley NunesSegunda a Sexta às 7h30 na Rádio Amazônia Viva FM - 89,5mensagemrestauradora.blogspot.com.br
Publicado por Mensagem Restauradora em Sábado, 5 de março de 2016

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A dor que necessito



É fato que o sofrimento, a tragédia, a dor da perda, geralmente produzem revolta; é fato também, que alguns sabem lidar melhor com as decepções e vicissitudes da vida. É a partir das reações e respostas positivas destes últimos à sua dor pessoal, que tanta gente tem sido socorrida e tem amainadas as suas agruras através da solidariedade do seu “irmão de dor”.

Para o corpo humano sentir dor é algo imprescindível. A Sociedade Americana de Dor (American Pain Society) e a Direção Geral de Saúde de Portugal, colocaram a dor no posto de quinto sinal vital, precedida pela pressão sanguínea, frequência cardíaca, respiração e temperatura. [1] Não sentir dor ou não ter sensibilidade a ela, ao contrário do que se possa imaginar, não é um privilégio, mas um prejuízo.

Para um ser humano, não sentir dor alguma redunda em autodestruição, em perda de parâmetros entre o real e o imaginário, entre a sensibilidade sem máscaras da vida e a insensibilidade ilusória e destrutiva do não sofrer.

A doutora Felícia Axelrod, do Centro Médico da Cidade de Nova York relata o caso estarrecedor do menino Felipe Garcia.

[…] Felipe, 9 anos, morava com a família num circo na cidade de Chihuahua, norte do México. Entre as atrações, estavam leões descritos como perigosíssimos, mas que na verdade sofriam pela falta dos dentes da frente, um globo da morte com 3 motociclistas, e “o incrível menino que se prega”. Quem pagasse o equivalente a R$ 5 para ver o show de Felipe não tinha como não sair impressionado.
O menino estendia a mão sobre a mesa de madeira e pregava 1, 2, 3 pregos nas dobras dos dedos da mão. Como era imune à dor, não soltava um único grito durante o espetáculo. Algum tempo depois, convidava a plateia para comandar o martelo. Aí, a coisa ficava ainda pior. O suposto voluntário, que na verdade era um funcionário do circo, errava de propósito a martelada e acertava um prego em um dos braços do menino, que continuava estático como se nada tivesse acontecido. Ao final, o público aplaudia com entusiasmo.
[2]



O que na verdade estava por trás desse feito do menino era a analgesia congênita, uma rara doença. Seus portadores não sentem dor e não percebam também as mudanças de temperatura, ficando assim sujeitos a acidentes, queimaduras e lesões que facilmente podem os levar à morte.

Nesse caso, não sentir dor é uma tragédia, até porque sentimos dor desde o nascimento. A criança para se adaptar à vida fora do útero, precisa abrir os pulmões e expulsar o líquido amniótico, e isso não acontece sem dor, inclusive ela é a indutora de todo o processo.

A dor, ao contrário do que se pode pensar, é protetiva. Ela indica que algo está errado, para que se possa tomar as providências cabíveis. Ao falarmos em dor não podemos nos furtar de fazer referência às dores da alma, que tanto solapam a sociedade moderna, como a depressão e os transtornos psiquiátricos.

Tudo isso patenteia o fato de que não há vida sem dor, posto que ela é o contraponto da felicidade e o norte que lhe dá significância. 

Ainda que o homem viva muitos anos, regozije-se em todos eles; contudo,
deve lembrar-se de que há dias de trevas, porque serão muitos.
[3] 


Qualquer discurso religioso ou filosófico, que fale de uma vida hedonista e isenta de dores, sem dúvida alguma, poderá ser taxado claramente de falacioso e/ou fanaticamente delirante.

Devemos apegarmo-nos a vida, sim; celebrando-a sempre; não esquecendo da dor, inevitável, remansado-nos com a morte, destino final de quem vive, alegrando-nos na ressurreição, esperança de quem crer. 

Wanderley Nunes.



[1] Dor: O quinto sinal vital, Blog Filosofia da mente e ciências cognitivas, http://filosofiadamenteecognicao.blogspot.com.br , acesso dia 30/04/2015, 14:16 h
[2] Eles não sentem dor, Super interessante. http://super.abril.com.br , acesso dia 30/04/2015, 14:41 h 
[3] Ec.11.8

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

O que nos frustra? (O sofrimento internalizado)



O que na verdade nos embaraça é a nossa cosmovisão, nossas esperanças e sonhos, os quais na verdade são episódios subjetivos e não fatos concretos. Decepcionamo-nos com nossas perspectivas mais do que com o fato em si, as vezes, nem fatos há, e sim sonhos, delírios de um ego que anela o inatingível, o inexistente.

Assim, concluímos que o sofrimento é gerado muito mais a partir das nossas internalizações do que de eventos exteriores a nós. Quando nos decepcionamos, nos frustramos, na verdade estamos nos decepcionando e frustrando, não com a pessoa ou situação que nos proporciona sentimentos dolorosos, e sim com a nossa perspectiva equivocada com relação a pessoas, situações e fatos.

É temerário basear a felicidade em bens materiais, conquistas das mais diversas ou em pessoas. Calligaris, Doutor em psicologia, fala de “conceito de bem estar”, em lugar do termo felicidade. Para ele, nenhum desejo satisfaz o homem plenamente, embora, de forma errônea, achemos que a felicidade esteja na consecução dos nossos sonhos e desejos mais íntimos.

Bem antes de Calligaris, o livro de Eclesiastes já apontava para o engano de se procurar a felicidade em coisas externas a nós.

Resolvi no meu coração dar-me ao vinho, regendo-me, contudo, pela sabedoria, e entregar-me à loucura, até ver o que melhor seria que fizessem os filhos dos homens debaixo do céu, durante os poucos dias da sua vida. Empreendi grandes obras; edifiquei para mim casas; plantei para mim vinhas.
Fiz jardins e pomares para mim e nestes plantei árvores frutíferas de toda espécie. Fiz para mim açudes, para regar com eles o bosque em que reverdeciam as árvores. Comprei servos e servas e tive servos nascidos em casa; também possuí bois e ovelhas, mais do que possuíram todos os que antes de mim viveram em Jerusalém.
Amontoei também para mim prata e ouro e tesouros de reis e de províncias; provi-me de cantores e cantoras e das delícias dos filhos dos homens: mulheres e mulheres. Engrandeci-me e sobrepujei a todos os que viveram antes de mim em Jerusalém; perseverou também comigo a minha sabedoria.
Tudo quanto desejaram os meus olhos não lhes neguei, nem privei o coração de alegria alguma, pois eu me alegrava com todas as minhas fadigas, e isso era a recompensa de todas elas. Considerei todas as obras que fizeram as minhas mãos, como também o trabalho que eu, com fadigas, havia feito; e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento, e nenhum proveito havia debaixo do sol. [1]

O que Calligaris diz é similar ao que é relatado em Eclesiastes. O desejo realizado perde o sentido. As vezes, se deseja muito um bem, uma viagem, um homem, uma mulher, ou qualquer outra coisa. A concretude desses sonhos, em si mesmos, não tem condição de proporcionar a felicidade, na verdade, são instrumentos ilusórios dessa busca.

Do mesmo modo, como o empreendedor registrado em Eclesiastes reagiu ao chegar na conquista daquilo que desejava, assim agimos com as nossas realizações. Ao realizar ou conquistar algo, segue-se a euforia, logo depois o tédio, para então, a busca do próximo feito.

É muito importante ter uma definição de quem somos, onde queremos chegar e quem são aqueles que nos rodeiam. Nunca esperando demais do outro, pois quem espera muito do outro, tem geralmente muito pouco em si. Então, simplesmente viva, ame, compreenda se possível, perdoe se puder, chore quando necessário, divirta-se sempre, sorria para o mundo. Seja você mesmo, mas não esqueça de ser… humano. 


Wanderley Nunes


[1] Eclesiastes 2.3-11

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

A necessidade de discernimento

Um dos grandes problemas da interpretação Bíblica, é a dificuldade de se entender o escrito profético como crença no realizado na dimensão do eterno, e o seu desfrute completo, quando tal dimensão se instalar em definitivo.

 Essa é a tensão entre o que já possuo de direito em Cristo, porém ainda não tenho concretizado de fato na dimensão física.

Podemos exemplificar de modo mais claro com a seguinte pergunta: Quando você se rende a Jesus, o Evangelho lhe assegura salvação não é? : “Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida”1. Mas nesse momento você tem seu corpo transformado e entra na eternidade? Claro que não!

Você já possui, apenas não desfruta agora. Um grande exemplo disso encontramos no episódio dos homens que foram comissionados por Moisés para espiar a terra prometida. Por promessa de Deus aquela terra já lhes pertencia, entretanto, eles ainda não estavam morando nela. Os espias, em número de 12, cada um representando uma tribo, trariam amostras de que a terra existia, não só para testemunhar sua ida lá, mas para provar também a veracidade de tudo que fora dito.

Disse o SENHOR a Moisés:
Envia homens que espiem a terra de Canaã, que eu hei de dar aos filhos de Israel; de cada tribo de seus pais enviareis um homem, sendo cada qual príncipe entre eles. […] Depois, vieram até ao vale de Escol e dali cortaram um ramo de vide com um cacho de uvas, o qual trouxeram dois homens numa vara, como também romãs e figos.
Esse lugar se chamou o vale de Escol, por causa do cacho que ali cortaram os filhos de Israel.
Ao cabo de quarenta dias, voltaram de espiar a terra,
Caminharam e vieram a Moisés, e a Arão, e a toda a congregação dos filhos de Israel no deserto de Parã, a Cades; deram-lhes conta, a eles e a toda a congregação, e mostraram-lhes o fruto da terra.
Relataram a Moisés e disseram: Fomos à terra a que nos enviaste; e, verdadeiramente, mana leite e mel; este é o fruto dela.2

Observe, “fomos à terra”, se foram lá, então a terra existia. Como provar para o povo que não havia tido a mesma oportunidade? Através da palavra (o testemunho) e dos frutos da terra (o sinal).
A palavra apontava para a terra da promissão, o fruto corroborava e autenticava a promessa. Agora temos a pergunta: Os frutos eram a terra? De modo algum, mas eram uma pequena demonstração da sua existência inconteste.

Do mesmo modo, Paulo faz uma alusão ao Espírito de Deus como um selo (sinal) para aqueles que tem crido no Evangelho. O Espírito de Deus com todas as benesses que lhe são inerentes, constitui-se assim num penhor (garantia) de que Jesus transformará o nosso corpo mortal e corrupto, em um corpo imortal e incorruptível na sua vinda e no seu reino.

Em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa; o qual é o penhor da nossa herança, até ao resgate da sua propriedade, em louvor da sua glória.3

Paulo explicita: Ao ouvir o Evangelho e crer nele, se recebe o Espírito de Deus como um selo de garantia da salvação. Logo, temos a salvação porque temos o Espírito, mas não temos ainda a imortalidade, a incorrupção, a nova terra, o novo céu… Embora tenhamos tudo isso garantido pelo selo do Espírito em nós, todavia, falta-nos a concretude, que se dará apenas no último dia.

Precisamos compreender a tensão existente entre o físico e o espiritual, entre o presente e o porvir, como diriam os velhos eruditos da fé: A tensão entre “o já, mas ainda não” do Evangelho.
Fui curado por Jesus, mas ainda adoeço, ele levou meus pecados, mas ainda peco, tenho vida eterna, mas ainda morro. Mas tenho a certeza do Evangelho que muito em breve não mais adoecerei, não mais pecarei, e não mais morrerei.

Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo. Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles.

E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram. E aquele que está assentado no trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. E acrescentou: Escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras.
[…] Então, me mostrou o rio da água da vida, brilhante como cristal, que sai do trono de Deus e do Cordeiro.
No meio da sua praça, de uma e outra margem do rio, está a árvore da vida, que produz doze frutos, dando o seu fruto de mês em mês, e as folhas da árvore são para a cura dos povos. Nunca mais haverá qualquer maldição.
Nela, estará o trono de Deus e do Cordeiro.
Os seus servos o servirão, contemplarão a sua face, e na sua fronte está o nome dele. Então, já não haverá noite, nem precisam eles de luz de candeia, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles, e reinarão pelos séculos dos séculos.4

Quando se consegue olhar a vida, tendo a alegria e leveza do evangelho, crendo que Deus pôs no homem - sobretudo no homem do evangelho - todas as possibilidades, não há razão para temor, aquele que crê está seguro. Pode encarar a vida, sabendo e provando do bem e do mal que lhe são inerentes, vivendo a liberdade do fardo leve e jugo suave de Cristo, que atrai, cativa e subjuga o homem com correntes e cadeias de amor.

Posto que em Cristo, o homem tem a possibilidade de ser ele mesmo e ser livre, livre das amarras da religião escravizante, livre dos dogmas petrificados, dos “irmãos” espias da liberdade alheia… Tendo a consciência de que é morada de Deus, possuidor de uma salvação que não perde e de uma unção que ninguém rouba.

Está portanto tal homem, livre de toda sorte de magias e inimigos invisíveis. Não há batalhas a serem travadas, a não ser consigo mesmo. Esse homem entretanto, pode se gloriar em Cristo, em quem todas as dificuldades e fraquezas humanas não possibilitam o afastamento do Reino de Deus.

Essa consciência, que só quem é do evangelho possui, é que tem o poder de constranger todo aquele que é objeto desse amor, tornando-o cativo a uma consciência do Espírito. Somos sim, livres de tudo, somos sim, cativos do amor salvífico do evangelho que nos alcançou, desfrutemos pois dele, sem culpa e sem medo.

Wanderley Nunes

1Jo.5.24
2Nm.13.1,2 e 23-27
3Ef. 1.13,14
4Ap. 21.1-5 ; 22.1-5

sábado, 28 de novembro de 2015

Os milagres e Is.53

A excessiva mistificação dos cultos modernos, sua ênfase em milagres, retrata claramente o nível precário de conhecimento Bíblico e histórico da grande massa de cristãos de todos os matizes.
A pregação que aponta para a histórica crença no porvir tem se perdido em meio ao discurso da satisfação imediata, do céu aqui na terra, perpassando de forma sutil a ideia de que a fé em Cristo leva a auferir lucros, a vida de quem crê é apresentada como transformada em um conto de fadas, e a terra em que vivem, em um paraíso edênico.
O insistente apelo ao sobrenatural e mistico, tem trazido um prejuízo muito grande a fé de muitos. Constantemente temos lidado com pessoas magoadas, feridas, decepcionadas com o evangelho que lhe foi apresentado e com o “seu deus”.
Um dos grandes sofismas apresentados por esse desevangelho é pregação da cura divina tendo como base o texto de Isaías 53.
Porque foi subindo como renovo perante ele e como raiz de uma terra seca; não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse.
Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso.
Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido.
Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados.
Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos.
Ele foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como cordeiro foi levado ao matadouro; e, como ovelha muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a boca.
Por juízo opressor foi arrebatado, e de sua linhagem, quem dela cogitou? Porquanto foi cortado da terra dos viventes; por causa da transgressão do meu povo, foi ele ferido.
A primeira avaliação a ser feita sobre esse texto, é que foi produzido em um meio judaico, sob uma cultura baseada na Torah, a qual denominamos comumente de pentateuco1. Pecar nesse âmbito era desobedecer a lei, consequentemente se receberia a pena devida.
O texto descreve alguém que viria sem o devido reconhecimento, quase que num ostracismo, para prover um escape com relação ao pecado, causa de todos os percalços de Israel sob a égide da lei.
Muito embora o versículo 4 diga que Ele levou sobre si as nossas enfermidades e dores (dos Judeus), é somente nessa parte do texto de Isaías 53 que a enfermidade e a dor aparecem sem estarem acompanhadas da sua causa (transgressão e iniquidade). No versículo seguinte há uma clara ligação do sacrifício do servo sofredor como pagamento da dívida do pecado de Israel.
Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados2.
Nesse versículo a ênfase é total sobre o pecado como motivo de todas as intempéries da nação Israelita, o servo sofredor aqui, sara do pecado. Parece uma interpretação inverossímil, mas vejamos o que o Novo Testamento nos diz sobre isso.
A interpretação de Pedro
Porquanto para isto mesmo fostes chamados, pois que também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os seus passos,
O qual não cometeu pecado, nem dolo algum se achou em sua boca;
Pois ele, quando ultrajado, não revidava com ultraje; quando maltratado, não fazia ameaças, mas entregava-se àquele que julga retamente,
Carregando ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos para os pecados, vivamos para a justiça; por suas chagas, fostes sarados.
Porque estáveis desgarrados como ovelhas; agora, porém, vos convertestes ao Pastor e Bispo da vossa alma.3
Pedro ao tratar do evento salvífico, nem sequer menciona a ideia de uma cura divina a ser recebida no momento em que alguém se rende a Cristo. Sua interpretação é: Nossos pecados foram carregados por Jesus, em Cristo fomos curados de todos eles.
Pedro que curou pessoas no nome de Jesus, não deu importância supra a cura física, não a pôs em suas cartas em pé de igualdade com a cura da alma. Ele sabia que vivia a fé no amanhã, sua esperança, ou melhor, certeza de esperança, estava no grande dia do Senhor, onde os mortos ressuscitarão, todas as doenças e dores terão ido embora, no cumprimento literal da profecia de Isaías 53.
Wanderley Nunes
1Os cinco primeiros livros da Bíblia Cristã. Que para os judeus contém a revelação da vontade de Deus e sua lei.
2Isaías 53.5
3I Pe.2.21-25